domingo, 22 de abril de 2012

FUTEBOL DE TUCUMÃ: TEORIA E PRÁTICA



Esse texto foi escrito pelo poeta Anibal Beça e publicado no nº 3 da revista Amazônia 21, editada em dezembro de 1999.
Estou transcrevendo na íntegra em homenagem ao nosso técnico amazonense Tarcízio Dinoá Junior.

O sonho da maioria das crianças brasileiras é se tornar um craque de futebol. Ou pelo menos um bambambã das peladas de rua. Não cheguei a ser nenhuma coisa nem outra. Sempre fui desprovido de habilidade com a bola. Não todas as bolas. No basquete e no tênis andei dando as minhas caçapadas e raquetadas. O Pavão (irmão do Mark Clark), e o Fubica (pai do iluminador Batata), estão aí e podem confirmar que não estou mentindo. Mas havia uma possibilidade, para aqueles que não mantinham intimidade com a popular redonda, de se sobressair e se impor. A salvação dos pernas-de-pau: o futebol de botão.
Vejo, com certa melancolia, que o jogo não é mais praticado da maneira que praticávamos. (Décadas de 50 e 60). As facilidades eletrônicas, ao que parece, exercem mais fascínio às crianças de hoje. É natural, são da geração hi tech, do computador globalizado. Hoje, o futebol de botão ou de totó, é praticado frente ao monitor de vídeo. Tudo muito asséptico e sem exigir muito esforço. Não sei se isso é bom ou ruim. Deixo o julgamento para os pedagogos e os psicólogos.
O que sei mesmo, com certeza, é que o nosso jogo de botão era acessível a todos, aos do centro e aos dos bairros, a ricos e pobres. Portanto, mais abrangente, bem mais barato e também mais criativo. Exigindo outras habilidades e informações que nos acompanham até hoje. Verdadeira lição ao ar livre. Discípulos socráticos sem sabermos, aprendíamos de tudo para confeccionar nossos times. Acredito até, que muitas recomendações atuais sobre o meio ambiente e ecologia (palavras que não se ouviam) já a praticávamos intuitivamente.
Tudo era feito por temporada. Obedecíamos um calendário que se regia naturalmente, mas sempre coincidindo com as férias escolares: do meio de ano e de final de ano. Havia o tempo dos papagaios, dos canga-pés, dos piões e, principalmente, dos botões de tucumã. O nosso futebol de botão se diferenciava exatamente aí. No restante do país se jogava com botões de baquelite (assim chamávamos a liga de plástico). Comprados, geralmente, na 4 e 400, a loja de varejo que veio a ser depois a Lobrás. Os nossos, não. Todos os jogadores, com exceção do goleiro, eram feitos de caroço de tucumã.
Para quem não sabe, tucumã é um coquinho, fruto da palmeira do mesmo nome, muito comum em toda a Amazônia. Das palmas, os índios extraem a fibra de tucum, usada na confecção de redes de pescar e de dormir, e outros utensílios. Havia duas maneiras de se conseguir a matéria prima para fazer os nossos times: comprados no Mercadão, nas feiras, ou indo diretamente colher na selva. Preferíamos, a maioria, a segunda opção. Por vários motivos.
Primeiro: a farra que fazíamos na excursão, geralmente de bonde, em direção aos bairro de Flores, Campos Salles e, bem mais longe, o Tarumã. Pegávamos o bonde Alto de Nazaré que ia pela rua Joaquim Nabuco até a Estação Primeira do Boulevard; de lá, seguíamos no de Flores, até a última parada no bar Bom Futuro, onde hoje tem um posto de gasolina, em frente ao Clube Municipal. Depois seguíamos a pé. Dependendo da disposição e do horário, a excursão poderia ir até o Banho dos Sabbá (em frente onde hoje é a fábrica da Phillips na Zona Franca de Manaus) ou continuar até a Fazenda Brasil (Rodovia AM-10 no quilômetro 11), fazenda comprada por meu avô Maximino Corrêa, para abastecer a fábrica de cerveja da família de lenha e para plantar amoreira. O velho queria desenvolver um polo têxtil de seda.
Segundo: aproveitávamos não só para colher e escolher os melhores caroços - que se tornariam em nossos craques - mas também para passarinhar. Muitos levavam gaiolas com alçapões para pegar curiós. Outros, com seus rapichés de filó, se dirigiam para os igarapés para pescar peixinhos ornamentais. Ainda havia outra turma, que preferia o politicamente incorreto: caçar. Com suas espingardas, geralmente calibre 36, iam à procura de cotias, pacas, tatus, inambus, saracuras e pombas galegas.
De volta, com muita pavulagem pra contar, é que se dava início a confecção dos botões. As calçadas se transformavam em linhas de produção. Haja moleque para descascar e comer os tucumãs. Era farra misturada à algazarra. Barulheira igual, só no tempo das mangas, com a festa dos periquitos. Escolhíamos os maiores para as posições de beque. Geralmente de tucumã arara. Alguns preferiam o tucumã babão para seus atacantes. A escolha recaía em face da coloração branca do coquinho. Depois seguíamos para alguma oficina que tivesse torno e serra de ferro.
No corte é que estava o segredo. Para os jogadores da defesa, cortávamos um pouco acima da metade do caroço; para os atacantes, o corte era bem baixinho, e para os beques serrávamos só um pouco. O bastante para uma base firme. Feito isso, voltávamos às calçadas para a fase da ralação. Em que se tirava o excesso das fibras; depois era a vez da lixa grossa e da fina, preparação final para o acabamento: com cera de carnaúba ou com graxa de sapatos. O importante é que ficasse impecavelmente brilhando. Tanto o time principal quanto os jogadores reservas.
Só aí é que íamos confeccionar os goleiros e as bolas. Uma etapa que também aproveitávamos para matar dois coelhos de uma cajadada: o chumbo e as rodas de madeira para os carrinhos de rolemã, encontráveis só nas oficinas do O Jornal e do Jornal do Comércio, ambas na Eduardo Ribeiro. Comprávamos ou trocávamos, muitas vezes por gibis, as sobras de chumbo das linotipos e os calços de madeira dos rolos de papel, usadas depois como rodas dos carrinhos que desceriam as ladeiras mais íngremes em disputadas corridas.
Com o chumbo em cima, faltava agora derretê-lo e encher uma caixa de fósforos e, pronto. Lá estava o Castilho ou o Gilmar, prontos para adentrar o estádio (variava entre pátios com cimento liso ou nos porões, ou ainda em cima de mesas de ping-pong).As bolas eram feitas de rolhas de cortiça, cortadas e lixadas. O apronto final, dependia da escolha do pente. A marca Flamengo era imbatível. Em virtude de sua maleabilidade.
Organizavam-se torneios inter-ruas, inter-bairros ou inter-turmas. As meninas cuidavam das torcidas organizadas, os mais velhos ficavam com a tarefa de arranjar os troféus, organizar o calendário. E os campeonatos, às vezes, se estendiam por toda as férias. Ao escrever essas linhas me chegam todos os sons. Os sons que faziam a nossa alegria, os sons das comemorações de verdadeiros gols de placa: “É canja, é canja de galinha, não há nenhuma equipe, que aguente a nossa linha”.


Um comentário:

  1. Obrigado pela lembrança, José Ricardo! Fico muito honrado com o belíssimo tecto. Um grande abraço e sucesso!
    Tarcízio Dinoá

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